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Comportamento de Consumo e Endividamento

Nessa entrevista, a psicanalista Keila Bis Morais explica as dinâmicas psíquicas e oferece caminhos para uma relação saudável com o consumo.

Após três meses de alta, o percentual de brasileiros endividados em junho de 2024 permaneceu em 78,8%, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), indicando estabilização na demanda por crédito e maior cautela das famílias para evitar dívidas. Para além de atender às suas necessidades básicas, muitas pessoas consomem para preencher um vazio inter-no, e para entender esses comportamentos, a psicanalista Keila Bis Morais explica como o desejo, a falta e a compulsão influenciam nossas compras.

As dinâmicas psíquicas influenciam nossos comportamentos de compra e oferecem caminhos para lidarmos com esses impulsos de maneira mais saudável. Keila explica que é possível transformar sofrimentos e melhorar a relação com o consumo ressignificando o olhar para si mesmo, entrando em contato com conteúdos inconscientes e transformando sofrimentos em algo mais potente, que não seja apenas sofrer com eles.

Formada pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) em São Paulo, Keila atende online pacientes brasileiros tanto no Brasil quanto em outros países desde a pandemia. Ela também publicou diversos artigos no portal da revista Vida Simples, compartilhando seu conhecimento por vários anos. Confira a entrevista com a especialista.

Como a psicanálise explica o desejo de consumir e comprar além do necessário?

O consumo desenfreado faz parte do âmbito das compulsões e as compulsões são de fundo emocional. Portanto, o melhor tratamento é o psíquico; a terapia pode ajudar muito. Não é consumindo além do necessário que o problema vai ser resolvido. Porém, muita gente compra para encobrir uma dor, uma desilusão, uma preocupação, um trauma. Isso pode acontecer também com perdas de emprego, fins de relacionamentos, desejos e objetivos não realizados. Por exemplo, alguém querido falece e, por não conseguir fazer o trabalho do luto, de elaborar a perda daquela pessoa, de sustentar e atravessar as oscilações emocionais que o luto nos traz, a pessoa mascara essa dor desenvolvendo uma compulsão por gastar, comer, pornografia, jogar, apostar, ou usar drogas.

Qual é a relação entre a sensação de falta ou vazio emocional e o comportamento de consumo desenfreado?

Os excessos, como o comprar desenfreadamente, também apontam uma falta. Eu sinto que me falta amor, carinho, apoio ou compreensão e saio comprando para preencher aquele vazio. Ou seja, eu queria amor, não encontro e passo a comprar sapatos compulsivamente. Outro ponto: tem gente que não compreende, não aceita que na vida sempre nos vai faltar algo. A completude é impossível. Mas há quem insista em preencher todo o vazio por ter uma ilusão de que vai ser mais feliz. Aí a compulsão entra com tudo. Eu tenho um chinelo vermelho, depois quero o verde, depois o preto, o branco, depois quero o modelo novo e por aí vai. E o capitalismo é excelente para transmitir essa ideia falsa de que nos falta algo e que, se tivermos tal produto, vamos ser mais felizes ou mais poderosos, superiores.

Que papel a sociedade de consumo moderna desempenha na intensificação dos desejos de compra?

Acredito que os principais sejam transmitir uma ideia falsa de que nos falta algo, de que, se não consumirmos tal coisa, somos menos, inferiores, ou estamos perdendo algo importantíssimo e que aquele objeto nos traz felicidade ou nos torna mais importantes, poderosos. Mas cai nessa cilada quem tem algum sofrimento psíquico e emocional, consciente ou inconsciente, não elaborado. O que quero dizer é que não é todo mundo que cai na armadilha capitalista, que tem como máxima o consumir excessivamente e sem que haja uma real necessidade de consumo. Mais uma vez, não é todo mundo que sofre de compulsões, porque? Porque tem muita gente que consegue elaborar bem as suas faltas, dores, frustrações, perdas, tem autoconhecimento, consegue falar sobre aquilo que dói. Agora, quem tem como sintoma uma compulsão por consumir, aí o capitalismo entra com toda a sua força, infelizmente, porque a chance dessa pessoa se endividar, ter inúmeros cartões de crédito, criar mais problemas para a sua vida, é muito grande.

Quais desafios devem ser encarados para reeducar-se para evitar compras impulsivas e des-necessárias?

O que eu vejo como psicanalista é que para muitos é difícil entrar em contato consigo mesmo, ganhar autoconhecimento, sustentar uma terapia para saber mais de si mesmo, falar sobre aquilo que dói e elaborar e transformar o sofrimento. Viver não é fácil, muitas vezes, temos que lidar com desafios que nos marcam fortemente, e o melhor caminho é resolver isso por meio de um trabalho psíquico, ou seja, entrar em contato com as emoções, entender por que aquilo aconteceu, dar tempo para digerir o ocorrido, ter novas ideias, ver a situação sob pontos de vista diferentes. Veja que rico e amplo pode ser um trabalho psíquico e emocional para dar conta de um sofrimento que estamos vivendo e como podemos sair dessa experiência difícil mais potentes, aprendendo a ressignificar dores, estando mais em contato conosco mesmos. Agora, o que é que o consumo desenfreado vai fazer para curar essas dores? Nada. Mas, é sempre bom lembrar que o consumo desenfreado é o sintoma, a consequência que está mostrando que algo não está bem dentro, no uni-verso psíquico e emocional e que esse algo precisa ser elaborado.

Quais estratégias de autoconhecimento podem ser desenvolvidas?

Na Psicanálise, o trabalho vai em direção de ajudar os pacientes a entrar em contato com aquilo que dói, com os vazios, com os medos, traumas, frustrações, a contar a sua história de vida, a infância, relacionamento com os pais e vamos ajudá-los a elaborar melhor tudo isso. Falar é curativo, mas é um falar dentro do setting analítico, ou seja, um trabalho terapêutico no consultório. Claro que falar com amigos, com pessoas que confiamos e gostamos nos ajuda. Mas o falar dentro de uma terapia é diferente e, em se tratando de compulsões, eu acredito que o trabalho terapêutico pode ajudar muito.

Como a compreensão dos motivos inconscientes por trás do desejo de consumir pode ajudar as pessoas a desenvolverem um relacionamento mais saudável com o consumo?

Porque aí tratamos a causa, vamos na raiz do problema, seja ele inconsciente ou consciente, já que as compulsões são a consequência, estão na superfície, são o sintoma. O que será que está por trás desse sintoma, desse consumir além do necessário? Falta de amor, sexualidade reprimida, perdas, dores, segredos, sentimentos de culpa e vergonha, lutos não feitos, traumas não trabalhados, desejos reprimidos, raiva, desilusões, ressentimentos, mágoas, abandonos, complexos de rejeição, sentimento de inferioridade? Uma vez que se descobre a causa, o trabalho terapêutico é ajudar o paciente a elaborar isso tudo, ressignificar, ganhar outras compreensões. Aí o consumo desenfreado perde a sua função, ou seja, agora que eu consigo lidar com aquilo que antes me doía tanto e eu tinha medo de entrar em contato ou que eu não conseguia elaborar e eu tapava isso comprando desenfreadamente, agora eu não preciso mais disso.