Pesquisar
Close this search box.

A creditocracia: como nos tornamos uma sociedade da dívida e como enfrentar isso?

No livro “Creditocracia e os motivos para não ter dívidas”, Andrew Ross, professor de análise social e cultural da Universidade de Nova York, baseando-se nos problemas e desafios enfrentados pelas pessoas devido ao endividamento excessivo, descreve a sociedade atual como uma “creditocracia”.

 

Livro: Creditocracia e os motivos para não ter dívidas

Nesta entrevista, Junior Garcia, professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutor em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente (Unicamp), explica o que significa creditocracia, como chegamos a essa situação e sugere uma forma de enfrentamento da situação.

“Infelizmente a sociedade não sabe como funciona o sistema econômico. A única forma de enfrentar esse sistema é retirar a capacidade de criação de moeda do setor privado. Isso reduziria de maneira significativa a prática do endividamento do sistema econômico. As crises econômicas, em grande medida, ocorrem porque há um esgotamento da capacidade de endividamento das pessoas, empresas e dos governos”.

Confira a entrevista:

 

Você pode explicar o que significa creditocracia e como chegamos a essa situação?

Para entender esse processo, primeiro é preciso conhecer a definição de moeda. Segundo o Banco da Inglaterra, “moeda é um tipo de dívida e existem três tipos de moeda: efetiva, depósito bancário e reservas do banco central”. Com o fim do padrão no início dos anos 1970, a criação de moeda deixou de lastro “físico”, ou seja, nas reservas de ouro. A moeda passou a ser fiduciária, ou seja, baseada na confiança e no chamado curso forçado, definida em lei nacional. Usamos o Real (R$) porque precisamos pagar nossos impostos em R$. Guardamos R$, porque acreditamos (confiamos) que outras pessoas aceitarão R$ como forma de pagamento. Ao longo do tempo, o endividamento se tornou a base do sistema econômico.

Como isso ocorreu?

Isso ocorreu ao longo do século XX, porque a criação de moeda é realizada com a criação de dívidas. Nesse processo, o governo terceirizou parte da criação de moeda para os bancos (públicos – como Caixa e Banco do Brasil – e principalmente para os privados), ao definir que a reserva bancária obrigatória é inferior a 100%. No Brasil, a alíquota do depósito compulsório (reserva bancária obrigatória) está em torno de 20%. Isso significa que a cada R$ 100 em depósitos bancários, os bancos podem emprestar R$ 80. Se esses R$ 80 ficarem no sistema bancário, os bancos podem emprestá-lo descontando a reserva bancária, ou seja, emprestar R$ 64, assim por diante. Nesse exemplo, a cada R$ 100, os bancos podem criar R$ 400 em moeda bancária!

E como fica o papel do governo neste caso?

No caso da criação primária de moeda sob responsabilidade dos governos nacionais, esta também é realizada a partir da criação de dívidas. O governo nacional pode contrair dívidas (financeira ou com a aquisição de bens e serviços) e realizar o pagamento com a criação de moeda (primária). É a partir da criação primária que os bancos realizam seus empréstimos, descontando as reservas bancárias obrigatórias como ilustrado acima.

Os dados do Banco Central do Brasil (BCB) mostram que apenas 5,4% dos meios de pagamento estavam na forma de papel moeda em poder do público e depósitos à vista em julho de 2023 (estimados em R$ 616 bilhões), ou seja, quase 95% da moeda disponível na economia brasileira estava em investimentos financeiros (aplicados em “dívidas) – estimado em R$ 10,7 trilhões).

Nesse contexto, o crescimento econômico (leia-se crescimento do Produto Interno Bruto – PIB) depende necessariamente da criação de moeda, portanto, da criação de dívidas. Por conseguinte, o endividamento é a base do crescimento econômico. Em outras palavras, a “creditocracia” é inerente ao sistema econômico.

Junior Garcia, professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

O autor do livro menciona que os credores têm interesse em manter as pessoas endividadas. Como as instituições financeiras estão relacionadas à “creditocracia”? Como elas se beneficiam desse sistema?

Essa é a atividade principal das instituições financeiras, oferecer crédito as pessoas e empresas. Desse modo, o endividamento é o negócio principal das instituições financeiras. Como a dinâmica do sistema econômico (e o crescimento econômico) dependem da criação de dívidas, as instituições financeiras são beneficiadas, porque atuam em um mercado cativo. As instituições financeiras querem manter as pessoas e empresas endividadas, porque essa é a base do sistema econômico.

Quais são as implicações do endividamento massivo para a democracia? Como o poder dos credores estrangeiros pode afetar a soberania de um Estado?

A democracia já foi comprometida há muito tempo, independente da “creditocracia”. A maior parcela da população compõe a classe trabalhadora, incluindo os trabalhadores autônomos ou proprietários de pequenas empresas, que trabalha mais de 44 horas semanais (essa jornada é muito maior se consideramos os deslocamentos e as atividades essenciais para a preparação para o trabalho e para a sobrevivência, tais como as horas dedicadas para a formação educacional e profissional, para atividades domésticas – alimentação, limpeza da moradia, pagamento de contas etc. – e de cuidados pessoais e de dependentes – crianças e pessoas que necessitam apoio – etc.)

Logo, essa parcela da população não dispõe de tempo suficiente para participar dos espaços “democráticos”, como audiências públicas, debates sobre processos legislativos e nem mesmo das eleições. Como essa parcela da população pode participar dos processos democráticos? Quantas pessoas leem as leis orçamentárias? Os planos de governo? Participam de audiências públicas ou consultas públicas? Em resumo, essa parcela está presa à busca dos meios necessários para sua sobrevivência.

O endividamento e a desigualdade econômica agravam essa situação, porque parcela importante dos benefícios do trabalho (renda e lucros) é destinada para o pagamento de juros.

A questão dos credores estrangeiros é outro problema, porque em um sistema que depende do endividamento e globalizado, o endividamento ultrapassa as fronteiras do país. O Brasil está em uma situação relativamente confortável nessa questão, porque desde os anos 2000 o país é credor internacional.

Você acredita que as pessoas estão conscientes das implicações do endividamento em suas vidas e na sociedade? Como podemos conscientizar as pessoas sobre esses problemas? Como enfrentar a “creditocracia” e reduzir o impacto do endividamento excessivo?

Não, as pessoas não estão conscientes. Por exemplo, as pessoas sabem como ocorre a criação de moeda? Como é a dinâmica econômica? As pessoas sabem que o endividamento é a base do sistema econômico?

Infelizmente a sociedade não sabe como funciona o sistema econômico. Desse modo, a única forma de enfrentar esse sistema é retirar a capacidade de criação de moeda do setor privado. Para isso, o governo deveria definir a exigência de 100% de reservas bancárias obrigatórias, ou seja, os bancos somente podem emprestar aquilo que possuem em caixa. Isso reduziria de maneira significativa a prática do endividamento do sistema econômico.

As crises econômicas, em grande medida, ocorrem porque há um esgotamento da capacidade de endividamento das pessoas, empresas e dos governos. Quando há a renegociação das dívidas, com redução do nível de endividamento, o sistema econômico retoma sua trajetória até a próxima crise de endividamento.

Em seu livro, o autor menciona a importância da ação coletiva. Como as pessoas podem se unir para lidar com a questão do endividamento em massa?

Essa prática pode ser interessante, mas não resolve. O sistema econômico depende do endividamento. Uma possível forma de enfrentamento é exigir que os governos definam a exigência de 100% de reservas bancárias obrigatória. Outra forma é a criação de moedas sociais complementares, mas com alcance limitado. Aqui o público pode obter algumas informações a respeito:

https://www.scielo.br/j/ea/a/WGHp7JjfvZHhb8pfJ99Mwkq/?lang=pt

https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rbi/article/view/8654757

São dois trabalhos que escrevi a respeito do uso de moedas complementares.

Qual é o papel das cooperativas de crédito, como a Promocred, na promoção de práticas financeiras mais justas e sustentáveis? Como elas podem ajudar a combater os problemas associados à “creditocracia”?

O caso das cooperativas ilustra a situação em que as instituições somente podem emprestar aquilo que têm em caixa. Desse modo, as cooperativas tomam mais cuidado na concessão de empréstimos, além de que seus benefícios são distribuídos entre seus cooperados. É uma tentativa de contornar o sistema financeiro convencional, mas também tem alcance limitado em um sistema econômico dependente do endividamento.